sábado, junho 03, 2006
Quando eu for grande, quero falar como o Warren Ellis escreve.
Este é o meu segundo texto para este site, e é o segundo em que falo do
Warren Ellis. Há boas razões para isso. Para já, ele é um dos melhores escritores de banda desenhada a trabalhar actualmente.Depois, é também um dos mais versáteis.
O comic de que vou falar aqui chama-se
FELL, e não podia ser mais diferente do que falei da outra vez. Há tanto a dizer sobre o FELL, que nem sei bem por onde começar.
Acho que vou começar pelo mais simples: a história.
Richard Fell é um detective da polícia que foi transferido, por razões desconhecidas, da metrópole onde vivia, para Snowtown, uma cidade pequena (vila?) que tem exactamente três detectives e meio no activo (não vou explicar de onde vem o meio, para isso têm que ler o comic, desculpem). E nenhum deles é muito bom. O que, considerando o tipo de cidade que Snowtown é, não deixa de ser apropriado. Snowtown é o que se chama por aí de "feral city". Não sei qual é o termo em português, por isso nem vou arriscar traduzir. A melhor maneira de descrever é pedir-vos para pensar num daqueles centros comerciais de bairro, aqueles que eram excelentes quando apareceram, e toda a gente lá ia, mas que com o passar do tempo, foram sendo esquecidos, foram-se degradando, e agora só têm lá dentro 3 ou 4 lojas a funcionar, e o resto está ao abandono. Cruzem esse conceito com o de bairro de lata, e expandam a escala, e ficam com a ideia de como Snowtown é.
E é isso, basicamente. Uma cidade degradada, meia dúzia de personagens recorrentes, e um protagonista a tentar fazer o melhor que pode, primeiro no trabalho, e depois na sua vida, se é que consegue separar as duas coisas.
A arte é pelo
Ben Templesmith, artista com um estilo que normalmente não me agrada, mas isso é mais por gosto pessoal que por falta de qualidade. Ele é bom no que faz (normalmente são comics de terror), mas o que ele faz não me costuma dizer muito. Isto dito, a arte deste comic é excelente, e funciona de forma perfeita. Há comics que podiam funcionar com diversos tipos de arte e artistas, mas este não.
O que nos traz á parte mais dificil de discutir: o formato.
A ideia para este comic começou, precisamente, com o formato. O Ellis queria fazer um comic mais barato, mais acessível, e a forma que lhe ocorreu para fazer isso foi cortando no número de páginas de história. Além disso, queria também criar um comic baseado só num conceito. Um comic que não tivesse um story-arc prolongado, que não precisasse de ser pensado com demasiada antecedência. Como concluiu que um comic sem story-arc se presta a histórias contadas num só número, sem aquele "to be continued" irritante no final, e isso, por sua vez, torna o comic mais acessível, o Ellis decidiu juntar as duas ideias.
O problema que se lhe pôs foi que para contar uma história inteira num comic de 16 páginas com o seu estilo normal, estaria a defraudar o leitor, uma vez que o comic teria pouco conteúdo. Logo, teve que conceber um modo de devolver ao comic esse conteúdo perdido, o que implicava brincar com o formato de apresentação da história.
Primeira medida nesse sentido: a história teria que ser escrita para 22 páginas, e só depois o guião seria condensado, de forma a encaixar nas 16. A forma que o Ellis encontrou para fazer isto foi usar uma grelha fixa de 9 painéis por página, podendo ser usados variantes da grelha (fundir painéis, cortá-los ao meio, usar o espaço entre eles, etc) para efeitos de ênfase e ritmo. É aqui que entra o artista. Num formato tão rígido, o artista escolhido teria que ser excepcional em termos de criar atmosfera sem perder a noção de storytelling, e o Templesmith é, tenho que o admitir, perfeito para isso.
Segunda medida: acrescentar páginas de texto. No final de cada história, há sempre 3 ou 4 páginas só de texto, com o escritor a descrever a sua inspiração para a história do número em particular, ou os métodos de storytelling usados, ou ambas as coisas, ou nenhuma. Seja qual for o texto no final, é sempre interessante, e ilustra sempre algo do que o Ellis tentou fazer. Muitas vezes, até vêm incluidos trechos do guião, para que possamos analisar em pormenor determinado efeito.
O resultado de tudo isto é uma experiência que, na minha opinião, é simplesmente única. FELL é, neste momento,
o comic a ler por quem se interessa pela mecânica e arte dos comics, e acima de tudo, por quem gosta de histórias policiais curtas, densas, inteligentes, absorventes, e claro, baratas.
Porque por 2.5€, é algo que nenhum apreciador de bons comics se pode dar ao luxo de perder.
5 Comentários:
Parece-me muito bom. Creio ser um "on-going", certo? Se eu já não estivesse a coleccionar outros "comics", nomeadamente o "The Great and Secret Show" de Clive Barker certamente seria uma colecção que eu faria. :)
Descobri que tenho um "trade" do Warren Ellis chamado "Global Frequency" mas ainda não li. Ninguém quer fazer uma "review"? Fica a sugestão. :)
Boas!
Em primeiro lugar parabéns pelo blog, que tenho visitado de há umas semanas para cá e me parece muito interessante e com conteúdo (análises e escrita consistente), que por vezes escasseia por aí. A propósito de Fell, ainda não li, mas já fiz uma reserva de números atrasados, e estou à espera que cheguem para começar a ler, pois parece-me ser uma série muito boa, quer a nível de argumento, quer a nível de arte (confesso que sou admirador de coisas dark, daí gostar do Templesmith).
Em segundo, quero-te fazer um convite para uma visita a um blog que tenho sobre BD (http://nona-arte.blogspot.com/), e saber se estás interessado em fazer parte de uma lista que tenho de links para outros blogs, pois gosto sempre de perguntar aos autores dos mesmos se estão de acordo ou não. Um abraço! Boas leituras!
-Mauro: Obrigado, eu também gosto deste blog (e uma vez que ele não é meu, estou á vontade para o dizer). Em relação ao link, bom, lá está, este site não é meu, eu sou só um colaborador recente, mas penso que ninguém de cá terá alguma coisa contra. Já fui ao 9ª Arte, e pareceu-me bom, mas quero explorá-lo mais. Abraço!
-Inês: É do Ellis, portanto é bom. :) Para ser sincero, o Global Frequency brilha mais pelo conceito que pelas histórias, mas pelo que me lembro é bonzito. É uma espécie de Mission Impossible futurista. O problema da série, pelo que me lembro (só a li uma vez), é que como o artista era sempre diferente, os resultados eram inconsistentes. Mas lê-se bastante bem. Depois diz o que achaste, ok? Bjos.
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